Milhões de pessoas mergulharam no universo da internet durante a pandemia e a tendência é cada vez mais utilizarem os serviços virtuais. Neste contexto, pouco é falado sobre o comportamento digital dos usuários e como funciona a engrenagem dos dados que circulam em todas as plataformas e aplicativos. Para entender melhor este funcionamento, conversamos com Sérgio Amadeu, doutor em ciência política pela USP e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). Dentre outras obras publicadas, recentemente lançou o livro Democracia e os códigos invisíveis: como os algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políticas.
Especializado em inclusão digital e software livre, o pesquisador foi um dos implementadores dos telecentros da América Latina e presidente do Instituto Nacional de Tecnologia e Informação. Na entrevista, ele fala sobre a importância do investimento em infraestrutura para armazenamento e processamento de dados e o desenvolvimento de ferramentas nacionais para não nos tornamos uma colônia digital. O perigo da disseminação de fakenews nas redes, a democratização do acesso à internet como direito humano, a modulação de comportamentos a partir dos dados, dentre outros assuntos, também foram abordados na conversa.
Com a pandemia houve uma imersão em massa no mundo virtual, inclusive com milhões de pessoas obrigadas ao teletrabalho. Como fica a questão do nosso comportamento digital?
Muitas pessoas descobriram a internet, porque não sabiam ainda a importância da conectividade e de se ter uma rede estável. Principalmente as classes médias foram levadas ao teletrabalho, que já era conhecido em várias regiões do mundo por várias profissões. As que já trabalhavam nas redes digitais viram a importância de não se conectar também. Outras passaram a ter práticas na internet, e começou a haver grandes problemas como a dificuldade da banda larga. Você paga por 10MB e só recebe 2 no Brasil, porque o judiciário é muito complacente com as operadoras de telecom. Não equaliza as pessoas, a internet dos pobres é muito pior que a dos ricos. A dos pobres e negros das periferias não tem estrutura com qualidade, e isso não se resolve em dois ou três meses. A internet deve ser considerada um direito humano universal com campanhas mais fortes de democratização da comunicação e acesso às redes digitais. Tem que ter metas, qualidade e equidade.
Teve um debate na sociedade com os estudantes da rede pública com a educação à distância, na questão do acesso.
As pessoas que não estavam acostumadas com várias aplicações tiveram que usar, e as escolas e muitas universidades aderiram acriticamente a esse famoso ensino à distância. Quem tem filho em escola, como eu que tenho três, sabe que é um desastre completo. Porque ou você se preparava, fazia a interface adequada, condições de acompanhar aquela garotada que já estava conectada e no mundo dos games, ou você simplesmente utiliza a plataforma das grandes corporações que vêm aqui para coletar dados das pessoas. Precisaria de uma série de elementos de aculturamento, de entender a lógica dessa garotada e ter elementos de atração. Um tempo muito mais reduzido, porque a concentração das pessoas se desfaz. Não é só instigar a garotada a aprender, algumas orientações para ter disciplina no estudo e isso não se faz as deixando na frente de um computador e muito menos do celular. 52% conectam a internet exclusivamente pelo celular, isso é um limitante gigantesco para um aprendizado mais amplo na internet.
A internet é muito sensacional e tem inúmeros tutoriais disponíveis. A comunidade do software livre aprende porque tem um monte de pessoas autodidatas, mas tive várias discussões com hackers geniais, hackers no sentido de pessoas com grandes habilidades com os códigos e não de criminosos como diz a imprensa, e diziam que o preço da liberdade é o conhecimento. Perfeito, mas a forma de adquirir conhecimento não é igual para todos. Quando você tem muita vontade, garra e necessidade aprende coisas na internet, mas pegar um ensino global e jogar numa criança está errado. Precisamos enfrentar esse problema, melhorar este ensino que precisa da internet como um elemento crucial. Desenvolver metodologias, capacitação, etc. Não aceitar a ideia de usar essas plataformas que estão aí e pronto. E as escolas ao incorporarem Microsoft, Google, etc, simplesmente entregaram para essas plataformas do mundo rico e desenvolvido, os dados, as relações e informações didático pedagógicas, dos nossos estudantes. Elas não dão de graça isso, oferecem interfaces que funcionam em troca de algo muito mais valioso: dados pessoais. Hoje a principal área de economia informacional é o mercado de dados pessoais. É um escândalo, o Congresso Americano jamais autorizaria que dados das suas crianças e adolescentes e do processo de aprendizado delas fosse hospedado noutro país. Eles estão atuando contra tudo que a gente sempre denunciou, as possibilidades de espionagem, por exemplo, do 5G da Huawei. Tudo que eles atacam a ela, fazem aqui e no mundo inteiro. Então se queremos uma capacidade de controlar, de discutir, presumir, planejar e criar a educação que nos interessa, com base no nosso conhecimento, vivacidade e cultura, precisamos também criar as nossas plataformas. Não podemos nos tornar uma colônia digital.
Qual o histórico do software livre no Brasil e quais temas envolvem o assunto?
O Brasil chegou a ser um país muito importante no mundo do código aberto e no compartilhamento do conhecimento. Você tem a via da apropriação privada fechada e opaca do conhecimento, que está dominada pelos norteamericanos e governos autoritários, como o da China, que quebra isso e não tem uma imprensa para detonar. Aqui se fizesse qualquer coisa de interesse nacional viria os carinhas do Bolsonaro, que são pau mandados dos norteamericanos, detonar. Não conseguimos fazer um One Laptop Per Child, um computador só para criança, porque foi detonado pela Microsoft porque só usava software livre. Foi usado no Uruguai e outros países, mas aqui de onde era o projeto de um americano, Nicolas Negroponte, do MIT, não conseguimos fazer. Porque aí vem a revista Veja, o cara liga para o promotor e o juiz amigão. Falta consciência cívica de desenvolvimento de uma estratégia que beneficie nossa população.
Mas isso não vem do governo Bolsonaro, a discussão vem de muitos anos atrás…
O Brasil chegou a transformá-lo numa política pública do Estado, mas não sem muitas resistências. O governo viu que a chance de se desenvolver no planeta não era do caminho do código fechado e da propriedade intelectual, e sim da liberdade e do conhecimento. Em 2003 foi feito o Comitê de Implementação de Software Livre no governo federal. Em meados de 2004 quase 80% dos servidores da esplanada usavam Microsoft Windows, que é uma coisa instável e cara, e em cerca de um ano já tinham migrado de rede usando software livre, que o mundo inteiro usa na área de infraestrutura. Então aqui teve que entrar nas áreas do governo, tão poderoso era o lobby do software proprietário. Mas foi feita uma guerra para impedir e bloquear nos governos federal e estaduais. Conseguiu ter o Portal de Compartilhamento de Dados, de software público, avançou em várias aplicações e foi muito utilizado pelo setor privado e importante na inclusão digital gerando vários telecentros e pontos de acesso à internet. Mas foi combatido e bloqueado, e para gerar cada vez mais negócios no compartilhamento de conhecimento precisava de trabalho, invenção, serviço, educação, formação das pessoas, na adequação de códigos para empresas. Alguns revendedores criticavam, só que eles nunca serão dono do Windows. Você usa aquilo como se fosse um aluguel, nem sabe como funciona, não tem acesso ao código fonte e não pode adequar às suas necessidades, porque sempre será da Microsoft. O software livre não, mas não quer dizer que ele seja de graça. A palavra livre é ter acesso aos códigos que o constituem, sua linguagem de programação, melhorá-lo e distribuí-lo. É muito importante para o Brasil, porque abre espaço num mundo cada vez mais fechado.
No mundo do software proprietário nos EUA, além de ser protegido por copyright um software lá pode ser patenteado e aqui não. A patente exclui pessoas do uso, é diferente do direito de cópia. No Brasil se eu compro um livro posso usar, mas não tenho o direito de utilizar a patente, só pode quem o detentor permite. A patente é protegida por 20 anos, nos EUA ela pode ser protegida por fórmula científica de algoritmo e de software. A piada é que lá você precisa de dois desenvolvedores e oito advogados para desenvolver software. É uma guerra jurídica e não tecnológica, como estávamos vendo na guerra contra a Huawei no 5G. Os EUA está perdendo e quer atrasar a China e usa instrumentos jurídicos, policiais, perseguições, etc. Então o Brasil estava forte, mas aí começou uma mega campanha do software proprietário que é um caminho desastroso. Tem quem ache que patente é desenvolvimento de tecnologia, mas é impedir que o outro desenvolva tecnologia a partir de uma capacidade jurídica, escritórios gigantescos.
Existem inúmeras licenças de software livre e de aberto. O Jitsi que é similar ao Zoom, por exemplo, funciona muito bem só não tem uma infraestrutura do mesmo tamanho do Google. O MEC poderia ter feito junto às universidades datacenters usando ou alterando o Jitsi e botando várias máquinas para sustentar. E discutir com nossos educadores como desenvolver um software que seja adequado à nossa realidade cultural, sócio econômica e aos nossos interesses sem dar os dados para treinar algoritmo de inteligência artificial para o mundo rico. Antes do Weintraub (ex-ministro da educação) fugir para os EUA publicou no portal do MEC um release dizendo que rodamos o Sistema de Seleção Unificada (SISU) no Microsoft Azure, que é a nuvem da empresa. Muita gente acha que nuvem é como se fosse algo que fica fora, mas nada mais é que um datacenter onde tem milhares de servidores hospedando as informações. Esse nome é uma marca fantasia, um marketing das empresas que querem concentrar dados ou oferecer hospedagem de máquinas. A Azure pegou todos os dados desses jovens e rodou lá fora. Reduziram custo e entregaram tudo à Microsoft. E nós nas universidades precisando de datacenters, de máquinas, na pandemia, podíamos ter uma infraestrutura, mas esse é o preço de uma mentalidade colonizada. Fizemos uma conta neoliberal e o mais barato foi entregar os dados de todos os nossos jovens. Disseram que atenderam até 7 mil preenchimentos de formulários por segundo na plataforma sem cair. No mundo onde os dados são valiosos, nós não conseguimos processar e hospedá-los? Treinar nossos algoritmos de inteligência de máquina?
Isso acaba gerando uma dependência eterna, não?
Uma dependência tecnológica, digital e dataficada. Precisamos enfrentar essa realidade, então muitos educadores estão nessa campanha e tentando encontrar soluções. A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) fez um streaming e um acesso às salas de conversas, de webinars, que ela instalou no Rio Grande do Sul e disponibilizou para várias universidades. O problema é que quando hospeda e roda num local distante precisa de qualidade de banda larga e infraestrutura de máquina rodando. Precisamos nos preparar, ou vamos fazer uma transformação digital para entregar dados da nossa população para a formação da inteligência artificial deles. Temos soluções de software livre para machine learning, porque inteligência artificial é um nome fantasia hoje e é gigante, mas o que mais está avançando é o aprendizado de máquina. Temos soluções para começar a desenvolver isso a partir de código aberto, mas para isso a mentalidade do gestor público, do Tribunal de Contas e todos do setor público precisa estar ligada.
Se você pegar o documento de inteligência artificial da França, escrito por um matemático que também é deputado, Cédric Villani, diz que o país está preocupado em não se tornar uma cyber colônia. Se ela com uma expertise enorme computacional está preocupada com isso, nós devíamos estar muito mais. Se não tivéssemos gente capaz, uma estrutura universitária fenomenal, ciência da computação, estatísticos de qualidade, cientistas de dados, etc. Mas primeiro veio o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), se não como faria engenheiros para construir uma empresa de aviação com a Embraer? Então para trabalhar machine learnings, tecnologia, interfaces, temos inúmeras universidades, o que falta é projeto e apoio.
É dramático, porque estamos desperdiçando inteligência. Em maio divulgaram um acordo da Cisco, uma grande empresa norteamericana de infraestrutura de telecom, com o Ministério da Ciência e Tecnologia para utilizar suas plataformas e reunir informações da inteligência artificial. Esse acordo está não só no âmbito da guerra do 5G, diz que vai melhorar a formulação de política pública usando a inteligência artificial que a Cisco vai nos fornecer. É novamente a mentalidade de colônia e subordinação, nenhuma universidade que está na ponta disso foi chamada. Temos condições no Brasil, mas essas corporações vêm, compram pareceres, fazem lobby, e nos mantém em condições de subordinação técnico-científica. Temos na América do Sul em relação à ciência e tecnologia três países (Chile, Bolívia e Argentina) têm 2/3 do lítio do mundo, mineral estratégico, e a gente exporta em estado bruto. Vão produzir bateria na Austrália, Coreia, China, Japão, Alemanha, EUA, e no Brasil não. Temos capacidade de produzir várias coisas com tecnologia aberta e conhecimento compartilhado, mas não há vontade política.
E temos que proteger o conhecimento das comunidades tradicionais brasileiras, que esse governo agora quer banir. O conhecimento do mateiro na Amazônia, do nosso xamã, dos quilombolas, não pode virar princípio ativo do laboratório europeu ou americano. Colocar restrições ao roubo e patenteamento não é contraditório aos princípios do software livre, porque entre essas comunidades o conhecimento é compartilhado. O problema é a empresa que vem e fecha para virarmos compradores do que é nosso. Restringe a circulação e chama de proteção, é muito cínico mas é o jogo do capital. Então temos uma lógica grande de fusão entre cultura hacker e das comunidades tradicionais, porque ambas compartilham o conhecimento e trabalham a solução coletiva. Uma no mundo pós moderno e outra no mundo tradicional, uma convive harmonicamente com a natureza e a outra quer descobrir formas de convivência.
E na questão individual das pessoas que estão cada vez mais imersas no mundo virtual, como fica a questão do comportamento digital e a vigilância neste contexto?
Grandes corporações já perceberam que podem tentar coletar o máximo de informações de cada um de nós para poder traçar o nosso perfil de consumidor, detectar as nossas vontades. Usam uma estatística sofisticada, porque tudo o fazemos na internet deixa rastros digitais, e eles vão tentando identificá-los para formar o nosso padrão. Isso é o que mais vale dinheiro hoje no mercado mundial. Cerca de cinco anos atrás a revista Times disse que os dados pessoais são o petróleo do século XXI. Tem um valor muito grande e fundamental que moveu a economia, mas não são naturais e sim inventados. Qualquer dado, até o RG e o CPF, teve alguém que inventou, e começa a vincular tudo a esse dado, que não dá em árvore. Foram criando coisas, como botar uma carinha do que você gosta e qualquer clique que a gente dá deixa rastro. Quem nunca fez uma busca do google e meia hora depois recebeu aquilo em todos os anúncios na internet? Isso se chama rede programática feita por algoritmos, eles te identificaram e cada site que você visita os banners são de um tipo e para o seu vizinho de outro. A propaganda na internet permite individualizar as campanhas e para isso precisa nos conhecer muito bem.
Além do consumo, no que mais o algoritmo pode influir nas vidas pessoais?
O seu dado pode ir para o banco, ser vendido para a farmácia, ao laboratório ou convênio médico, dado para o governo, etc. A sua vida passa a ser um livro aberto, o problema é que nas negociações econômicas você perdeu: quando o outro lado sabe tudo de você e você não sabe nada dele, você perdeu. Vai pagar um seguro mais caro, um empréstimo, ficar na mão de qualquer negociante, será induzido indevidamente a adquirir produtos, ter o seu comportamento modulado. Não entregue os seus dados e muito menos das suas crianças, e as escolas estão entregando agora para formação de padrão e perfil e isso não está correto. Os dados são muito importantes para fazer política pública, mas podem ser usados indevidamente e até politicamente. Gerar comportamentos ou visões que você não teria, porque foi bombardeado por informações que muitas vezes não são procedentes ou são muito exageradas.
Temos que proteger nossos dados para não ter prejuízo econômico e poupar sua vida de modulações indevidas. Do ponto de vista cultural, tem que proteger suas relações para evitar ações indevidas não só de corporações mas também de maliciosos. Por fim, politicamente, se você consegue não entregar informações exageradas pode formar os seus juízos com mais tranquilidade. Estará menos afeito à desinformação, hoje se usa muito na política a micro seleção do eleitorado com vistas a fazer influências que são bastante complicadas porque não se baseiam nos fatos. Criam todo um comportamento político que não é baseado no uso da razão e na verificação de fatos fazendo você acreditar no que quer, um processo esquizofrênico.
Isso remete a toda uma discussão sobre fakenews e a fragilidade das democracias, como nos casos das eleições do Bolsonaro e do Trump recentemente.
Vi uma pessoa na padaria falando que morre gente de doença qualquer, e a gente já está passando de cem mil mortos. Existem grupos que são pagos para destilar isso o tempo todo, os escritórios do ódio, são várias milícias que fazem desinformação na rede, que atinge pessoas a partir dos dados coletados. O youtube tem vídeos muito bons, tutoriais, inclusive na comunidade software livre, mas é uma plataforma que visa o lucro. Então os caras pagam essas pessoas que têm essa visão de suspender o debate racional baseado em fatos e colocar a ideia de valor acima de tudo. Não a verdade ou liberdade e sim valores em geral autoritários, conservadores e perigosos. O cara recebe um monte de canais de desinformação, vai clicando e assistindo. Uma esfera pública passa a ser moldada em torno da ficção, só que não é um filme de ficção porque quero. Entra numa suspensão da realidade e são tantas desinformações, que não precisam ser coerentes porque a ideia desses grupos é gerar a confusão. Isso é extremamente perigoso e complicado hoje, e acho que fragiliza a democracia e não permite soluções paras as nossas questões. No Brasil chegou a um ponto que professor passou a ser xingamento e a ciência negada. Tem gente que nega que o holocausto aconteceu, então estão criando esses valores e dando status de fato, ai não dá para aceitar. O virtual é real também, o que não é é o irreal.