Representantes de entidades sindicais, movimentos sociais e acadêmicos realizaram na tarde da última quarta-feira (26/03), no auditório da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, um debate sobre o tema Racismo Institucional no sistema de justiça: reflexões e avanços necessários. A Assemperj | Sindsemp-RJ realizou a organização em parceria com a Asdperj e a Asproerj. No debate, foram apresentadas pesquisas com diversos dados e muitas informações sobre o racismo dentro das instituições do judiciário carioca.
O evento faz parte da Campanha 21 dias de ativismo contra o racismo, resgatando o dia 21 de março de 1960, quando uma multidão foi repremida pelo exército do apartheid, em Joanesburgo, na África do Sul, onde morreram 69 e feriram outras 186 pessoas no chamado “Massacre de Shaperville”.
Logo na abertura a advogada e pesquisadora Ana Letícia da Silva Guimarães, mestranda em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF, falou sobre as desigualdades raciais na OAB e trouxe dados sobre o tema. Segundo ela, para além do debate sobre as causas do racismo institucional, é preciso também capacitar os operadores do direito para que ele não se perpetue na sociedade. Ela observou que a OAB foi pensada à época como uma casa da elite brasileira, e lembrou que demorou mais de 80 anos para reconhecer Luiz Gama como advogado, cuja atuação garantiu a liberdade a dezenas de escravizados, e mais de 90 para reconhecer Esperança Garcia, a primeira mulher reconhecida como advogada. Neste contexto, em 2014 foi criada a Comissão de Verdade e Escravidão na OAB, que só foi constituída no Rio de Janeiro em 2021.
“Em 2024 a OAB tinha cerca de 1,5 milhão de advogados, e uma pesquisa do seu conselho federal revela que 67% deles se consideram brancos e apenas 6% se consideram negros. Esses estudos fazem esse contraponto na sociedade brasileira, porque o IBGE alcançou no ano passado 52% de população negra frente a esse cenário. Esse número mostra que foram introduzidos no mercado, mas não só por conta das cotas e sim de várias faculdades particulares com um número muito grande frente às vagas nas faculdades públicas”, afirmou Guimarães.
A questão racial é sociológica, uma categoria sócio político que se dá nas relações de poder, destacou Daniele da Silva de Magalhães, defensora Pública mestra em Direito Constitucional pela UFF. Ela já integrou conselhos e comissões de igualdade racial, e relatou diversos casos de racismo, como o de uma desembargadora negra, amiga sua, que relatou preferir entrar pela garagem de carro a ser revistada todo dia na entrada da instituição. Atuou como assistente de acusação no caso Marielle Franco e ressaltou também o racismo estrutural no assassinato da vereadora. “É importante estar nos espaços de poder para modificá-los a partir das nossas perspectivas”, afirmou.
Introdução do antirracismo na formação dos advogados
A mediadora da mesa, Amanda Carolino, presidente da Asproerj, reforçou a importância de implementar matérias de direito discriminatório e temas afins na grade de formação dos advogados. Ela citou a importância de o CNJ ter incluído essas matérias nas provas de magistratura, de modo a que os futuros juízes, defensores, procuradores, etc, tenham acesso e consciência quando estiverem nos espaços de poder. Amanda também criticou o fato de muitos negros serem chamados quase que exclusivamente para debates apenas sobre a temática racial, mas quando se trata de temas de conhecimentos específicos, tais como direito tributário e outras áreas, os eventos são ocupados exclusivamente por brancos nas mesas.
Na opinião de Rosane Marques, Assistente Social, doutoranda em Educação pelo PROPED/UERJ e representante da Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate a Violência, as disciplinas das universidades são bem eurocêntricas e colonizadoras, então é preciso trabalhar a base dos novos advogados para criar uma consciência antirracista no meio jurídico. Por isso sua rede procura tirar as mulheres negras da invisibilidade e trabalhar sua formação para multiplicar o conhecimento crítico no meio.
“Enfrentamos a violência doméstica e feminicídios de mulheres negras, uma política de morte, e o sistema de justiça não entende que elas deixam crianças no sistema de adoção e não serão adotadas porque são negras. As profissionais da área sofrem com o adoecimento, a invisibilidade, a desqualificação profissional, saúde mental, etc, por serem negras. E na ponta as mulheres que precisam de atendimento da justiça reclamam do racismo que sofrem, além de todo o racismo no seu cotidiano, por isso a necessidade de conscientização de seus direitos”, explicou Rosane.
Políticas Públicas e mecanismos de combate nas instituições
Pensando em um atendimento mais humanizado à sociedade, a assistente social do MPRJ, Marcia Nogueira, destacou as relações étnico-raciais que permeiam o atendimento das instituições de justiça. No caso do Ministério Público, por exemplo, existe uma recomendação do CNMP para tratar de questões raciais nos MPs estaduais, mas que na prática não vêm sendo implementada. É preciso, no seu ponto de vista, estimular políticas públicas e mecanismos permanentes, como os Comitês e Comissões, para criar um tensionamento e direcionar melhor os investimentos nas estruturas. Muitas vezes os recursos estão voltados para o encarceramento e repressão, ao invés da promoção de direitos humanos e políticas públicas para pessoas negras.
“Há muita atenção para investigação criminal e penal, mas a população já chega capturada pelo sistema prisional vilã de uma sociedade extremamente racista. As mulheres e crianças, por exemplo, já chegam como objetos penalizantes nas instituições a partir de abrigos e prisões. É preciso utilizar mais dados para a promoção de políticas públicas, no caso do Ministério Público cerca de 0,1% dos promotores e procuradores são negros, por exemplo”, ressaltou.
A pesquisa sobre perfil étnico racial realizada pelo CNMP, disse Juliana Vargas, vice-presidente da Assemperj | Sindsemp-RJ, revelou que à medida que vão subindo os cargos desde estagiários aos membros do MPRJ, o número de negros vai se tornando ínfimo a medida que aumenta o status social e salários. Por isso a importância de adotar ações de raça e cor em todos os mecanismos institucionais, a fim de diminuir essa distorção histórica. Somente em concurso recente para membros do MPRJ se instituiu cotas para negros e indígenas, o que constitui um avanço ainda tímido numa instituição tão antiga.
Criação de Coletivo Negro do sistema de justiça
Os participantes anunciaram a criação de um coletivo negro para tratar do racismo no sistema de justiça no Rio de Janeiro. De acordo com Juliana Vargas, vice-presidente da Assemperj | Sindsemp-RJ, é muito importante porque o sistema de justiça é um dos que mais resiste às mudanças, devido à forma que se estrutura e atua para a manutenção das hierarquias e desigualdades. É um modelo em que, segundo ela, faz com que cada um permaneça no seu lugar social e no caso do negro é o cárcere, a subserviência e ausência de protagonismo.
O representante da Asdperj, Leonardo Quintão, lembrou que mesmo em espaços de poder a pessoa negra está sempre sendo lembrada da sua cor em situações do cotidiano. E ressaltou a sobresposição de opressões sobre as identidades quando envolve outros marcadores sociais: nesse sentio a mulher negra que sofre ainda mais que o homem negro, e se for pobre e lésbica essa camada de opressão é ainda maior, lembrou ainda do etarismo, e assim as opressões vão se sobrepondo.
Ao final, houve alguns comentários e contribuições da plateia que interagiu bastante com os membros da mesa e elogiou a iniciativa desse debate tão necessário para o aprimoramento da democracia.